Jesus e Paulo: vidas paralelas: Uma segunda conversão

27/01/2013 18:39

Resumo

O texto de Jerome Murphy O'Connor propõe um paralelismo entre as vidas de Jesus e Paulo, mostrando uma segunda conversão de ambos, que em sua visão seria o momento em que eles rejeitam a lei. Essa segunda conversão mudou definitivamente o curso de seus ministérios, levando-os a agir de uma forma peculiar que acabou os levando a morte.

Após seu contato com João Batista, Jesus não se torna um enviado dele, como se supunha de todos que foram até João para ser batizado por ele, mas se apresenta nos evangelhos como um superior de João Batista. Ao contrário do comportamento de todos os profetas diante da Lei, Jesus se coloca acima da lei recusando-se a se submeter aos requisitos dela.

Está claro que a prisão de João Batista não representa sua imediata execução. Suas condições como prisioneiro eram flexíveis a aparentemente ele se encontrava detido somente para averiguações e até que a decisão de sua morte fosse tomada, foi mantido fora de circulação.

É provável que o questionamento de João a respeito de Jesus – és tu aquele que estava por vir ou havemos de esperar outro? - tenha se dado em função de Jesus ter mudado significativamente seu padrão de conduta, sem entretanto ser negligente, mas exercendo de algum modo o poder que João já sentia não ter.

João sabia que o impacto da sua pregação duraria pouco tempo e que os convertidos e batizados voltariam às praticas anteriores. Por conta disso reconhece que a eficacia do batismo de Jesus é mais abrangente que a do seu próprio. Dessa forma, João considerava que um dos seus próprios discípulos era um possível candidato para um papel que considerava ser superior ao seu. João não obteve uma resposta de Jesus a não ser a partir do que Jesus tinha vindo a dizer e a fazer a luz do que diziam as profecias.

As narrativas dos milagres de Jesus leva-nos a conclusão de que suas palavras e ações constituíam as bençãos escatológicas preditas por Isaías e o que não fora descrito antes implica em apontar que seu ministério vai além do que havia sido predito. Nesse sentido, esta nova era que surge é interligada a pessoa de Jesus e Ele supera a forma como os profetas se apresentavam.

Jesus se diferencia de João através do conteúdo de suas mensagens. Enquanto João falava em dor, punição, arrependimento, Jesus evidenciava alegria através da Boa-Nova e dizia “segue-me, o Reino de Deus está entre nós”. Jesus então se desvincula da visão de cópia de João Batista. Jesus é extremamente inteligente quando, usando as palavras tanto elogia João Batista quanto incrimina Antipas, que o prendeu e executou. Tinha consciência de que foi durante a missão que João batista lhe confiou que Ele percebeu sua vocação. Isso pode explicar porque afirma que não havia homem maior que João. A popularidade e João foi determinante para que Antipas o prendesse e matasse.

Os inimigos de Jesus o classificam como comilão e beberrão, o que significa dizer que ele é um filho rebelde que merece a morte, todavia, é possível que a intenção de Jesus em comer e beber com os que eram considerado indigno era um sinal de aceitação.

O'Connor salienta que os pecadores recebem um status diferente do que tem hoje. Pecadores são todos os que comentem pecado, diferindo-se dos que são chamados de sem lei. A diferença entre eles está na atitude por trás de seus atos.

A transgressão para os pecadores é um ato de fraqueza, para os sem lei, um ato consciente. Mesmo os que trabalhavam em profissões consideradas indignas, tais como condutor de burros ou camelos, marinheiro, carreteiro, pastor ou lojista, consideradas artes de ladrões, não estavam fora do alcance da misericórdia de Deus, mas para serem dignos dela, deveriam adicionar ao arrependimento a restituição, pois isto era o que exigia a Lei.

Nesse ponto, chamar Jesus de o bom pastor é emblemático. Na visão de Jesus, esses pecadores não estariam fora do reino, mesmo que não restituíssem o que foi tomado. Esta forma diferenciada de Jesus encarar o arrependimento, o distancia de vez de João Batista.

No que se refere a problemática da Lei, Jesus a rejeita, quando percebe que o mais importante é ser humano, mas não vê problemas em que ela seja cumprida sob uma perspectiva que não suprima do ser humano seus traços de humanidade. Ele preocupava-se em entender quais foram os motivos pelos quais o indivíduo não cumpria alguma lei, chegando a conclusão que em dados momentos, a lei transformava a vítima de uma situação social errada em pecador. De fato, Jesus que nos tempos como discípulo de João acreditava que Deus era o legislador, passa a entender e reconhecer Deus como Pai.

Jesus afirma que são suas palavras que devem ser observadas e o ouvir e fazer estão relacionados às palavras de Jesus e não à Lei. Ele pensa na lei, mas proclama suas palavras como importantes. As palavras de Jesus articulam a vontade de Deus, assim como a Lei expressava outrora. O comportamento de Jesus diante da Lei e diante de Deus e o modo como ele tratava com os dois mostra claramente o processo de segunda conversão de Jesus.

Paulo era defensor da Lei, e por conta disso repudiava a Jesus como um insano pois achava absurdo que ele se considerasse acima da lei. Ao perseguir os seguidores de Jesus, acaba tendo uma experiência sobrenatural com Ele. Nessa experiência, descrita na narrativa bíblica sem muitos detalhes e como tenha acontecido, Paulo identifica Jesus como Senhor - “Quem és tu, Senhor” - todavia, não o intende ainda como Cristo. Mesmo não sendo um senhor qualquer, tendo em vista que era o messias Judeu, aguardado por todos, inclusive por ele, Paulo não precisou reconhecer Jesus como Senhor e filho de Deus, pois ao reconhecê-lo como messias, já estava familiarizado com o fato de o Messias ser senhor e filho de Deus.

Ao rejeitar a Lei, Paulo entra em paralelismo com Jesus. Se no caso de Jesus a rejeição da Lei foi uma escolha lenta e traumática, para Paulo foi diferente pois ele estava mais preparado e não experimentou qualquer ambivalência. Isso se deve ao fato de que, durante a perseguição que ele infligia aos cristãos, foi conhecendo aos poucos sobre Jesus, fazendo-o refletir sobre a questão Lei/Messias.

Para ele a existência da Lei e Messias juntos não fazia sentido. Ao aceitar Jesus como messias, percebeu claramente que a Lei já não fazia sentido, tendo se descompromissado dela sem nenhum peso. Para Paulo, dar espaço para a lei em uma comunidade cristã era o mesmo que criar inimigos para Cristo. Resumidamente, classificou o cumprimento da Lei em “amar ao próximo como a ti mesmo” e “suportai-vos uns aos outros”.

Crítica

O texto de O'Connor traz um impacto muito grande ao lê-lo pela primeira vez. O assunto do qual ele trata é pouco difundido nas comunidades de fé sendo, portanto, pouco usual trabalhar a perspectiva de uma segunda conversão de Jesus e Paulo.

Do ponto de vista de uma comunidade de fé, já é uma tarefa difícil trabalhar com a ideia de uma primeira conversão de Jesus, tendo em vista que o que se ensina é que o Cristo veio ao mundo mas não pecou, e se não havia pecado nele, não havia do que se arrepender, e não tendo do que se arrepender, não poderia existir conversão. Ao apresentar a segunda conversão de Cristo, em principio, há um choque tanto cultural quanto de negação de um saber já estabelecido.

A segunda conversão de Jesus, segundo O'connor se dá quando em algum momento de seu ministério na Galiléia há uma mudança radical na sua forma de lidar com Deus e com a Lei. Essa mudança só pode acontecer a partir do momento em que ele se descompromete da missão de João Batista. Isto é um outro dado conflitante com o que se anuncia nas comunidades de fé, tendo em vista que há uma dupla perspectiva de João Batista: uma, que ele era só o precursor de Jesus, isto é, tendo Jesus surgido, o ministério de João parece perder todo o sentido. A segunda perspectiva era que Jesus seguiu um ministério a parte do ministério de João Batista. O texto coloca por terra essas duas perspetiva e mostra com clareza que não só o ministério de João Batista não se estanca diante do aparecimento de Jesus, como o ministério de Jesus inicia-se através do discipulado que ele possuía em João Batista.

É interessante como o autor aborda o cuidado de Jesus em perceber que se alguém descumpria alguma lei e o fazia na intenção de salvaguardar seus familiares, não o considerava um mero transgressor da lei, antes o colocava em um status de alguém que merecia ser incluído no reino por ter a percepção de que a vida humana deve ser preservada.

Outro ponto muito interessante é a percepção de Jesus ao encarar Deus como pai. A relação que Jesus havia traçado antes disse era de alguém que estava vinculado à Lei. Para Jesus, o Deus de Israel era o Deus da Lei, o que a princípio pode ter produzido em Jesus uma tarefa árdua em harmonizar as verdades da Lei e as verdades que ele dizia e no fim de tudo declarar que muitos dos condenados pela Lei não eram culpados. A partir desta perspectiva, Jesus passa a enxergar Deus como pai.

Excelente a explicação da expressão “conhecer na carne”, feita por O'Connor. De fato, é mais interessante pensar que conhecer na carne ou não era só uma forma de traduzir como verdadeiro ou falso o conhecimento que se tinha de alguém. Paulo abandona o conhecimento que possuía de Jesus como defensor da Lei – conhecer na carne – e passa a seguir o conhecimento que possuía através de sua experiencia com o Cristo feito Senhor. Não deixou de ser interessante também a apresentação de uma possibilidade em que Paulo teria sido o jovem rico a quem faltou coragem para segui Jesus.