A tradição sinótica: surgimento da teologia cristã

25/09/2012 14:33

Pré-tópicos.

    Há duas formas de leitura de qualquer texto. Uma forma é a sincronia e a outra é a diacronia. A proposta ideal é que se faça a utilização das duas formas para análise de um texto. Pela sincronia, a análise é feita a partir de um texto pronto e o que este texto pronto diz ao leitor e à comunidade onde o leitor se encontra. A diacronia analisa como esse texto foi construído.

    A ordem dos textos do novo testamento não corresponde a ordem em que eles foram escritos. Mateus, por exemplo, é o primeiro texto a ser apresentado no novo testamento, pois ele é o evangelho mais didático, onde se consegue ver uma organização da ética cristã logo nos primeiros capítulos, seguido dos milagres de Jesus, o que mostra que esta ética posta em ação muda a vida de pessoas.

    Se pensarmos de forma diacrônica, veremos que estes textos todos arrumados no segundo testamento, não correspondem a essa ordem e não foram escritos com o objetivo de que um dia fossem reunidos na bíblia. Isto se aplica tanto aos livros do primeiro testamento, quanto aos livros do segundo testamento. O Canon do primeiro testamento foi formado em 90/91 d.C, no consílio de Jamnia, formado por fariseus que decidiram quais livros eram sagrados para o Judaísmo.

    O Canon do segundo testamento tem um processo mais demorado. O processo começa no terceiro século e avança até o quinto século, considerando ainda que o livro de Apocalipse só foi aceito como literatura inspirada, nas igrejas ocidentais, no sétimo século, teremos um processo de aproximadamente quinhentos anos em que a igreja não tem certeza absoluta de quais livros são considerados canônicos.

    O que faz um livro ser sagrado para o judaísmo? Existem algumas regras para que um texto seja canônico. Uma delas é que o texto tenha sido escrito em hebraico. Além disso, o texto deve ter um vinculo de relação com Deus. Por conta disso, na bíblia hebraica o último livro é o livro de Ester, pois o mesmo não faz nenhuma referencia ao nome de Deus.

    Na época em que os livros do segundo testamento foram escritos, eles não eram considerados escrituras sagradas. As referências neo-testamentária “Toda escritura é divinamente inspirada” ou “para que se cumprisse o que diz as escrituras” são relacionadas com o primeiro testamento e não com os textos do segundo testamento.

     As primeiras reuniões de cristãos do segundo testamento não são feitas a partir da leitura de textos, mas a partir das tradições existentes. Em função de não se ter um texto único, padronizado para todas as comunidades, cada comunidade possuía sua própria leitura teológica dos acontecimentos relacionados ao cristianismo. Nesse sentido,o cristianismo primitivo é muito mais plural, ecumênico. Por ecumênico, podemos entender aquele que, no cristianismo está aberto ao diálogo. O ecumenismo acontece dentro de um contexto cristão e é diferente diálogo inter-religioso. Em todas as religiões é possível encontrar um ponto de contato. Em todas as religiões, por exemplo, há o que se conhece como busca pelo sagrado. Nesse sentindo, há algo comum entre todas as religiões.

    Há um equívoco e pensar que pelo fato de vivermos em um ambiente de cristianismo reformado, o que se havia antes dele foi condenado ao inferno. A intenção de Lutero com a reforma não era a de fundar uma outra igreja, mas de reformar a igreja católica. Além disso a teologia Luterana é Agostiniana, ou seja, vem de Agostinho.

    A Igreja é em sua origem Católica, apostólica, cristã e a perversão dela se dá a partir do momento em que ela se torna Católica, apostólica, romana. Esta igreja começa com Constantino, imperador Romano que teria se convertido ao cristianismo e termina com Teodósio que admite o cristianismo como religião oficial do império romano, o que abre as portas do império para o cristianismo. Neste momento temos uma igreja que absorve a estrutura do império romano na liturgia, na forma de pregar, na forma de receber um novo convertido.

1 - Influencias externas e internas sobre o cristianismo nascente:

a) Universalismo do Império Romano

    A ideia de que Constantino se aproveitou dos cristãos não é muito bem estabelecida. Constantino só foi batizado no dia da sua morte. Os cristãos não possuíam nada para oferecer ao império Romano, em sua grande maioria pobre, e não tinham como apoiar o império Romano.

    A história da conversão de Constantino é contada como se ele tivesse tido um sonho, onde via um sinal e ouviu uma voz que dizia “com este sinal vencerás”. O simbolo é um símbolo do cristianismo. Constantino manda pintar o simbolo os escudos dos soldados, e os inimigos ao olharem para o simbolo batem em retirada. Ele então considera que o cristianismo tem uma força sobrenatural e passa a transformar os templos pagãos em templos cristãos.

    A presença do império romano no século quatro já era uma influencia no cristianismo nascente, tanto positivamente quanto negativamente. Existia um conceito de paz chamada de “Pax Romana” que basicamente significava a paz pela força, o que gerou várias crises entre os cristãos, porém de certa forma contribuiu para a difusão do cristianismo, tendo em vista que o império se ocupava de manter relativa ordem em seus domínios, o que facilitava as viagens dos primeiros cristãos, momentos em que pregavam o evangelho.

    O Império romano tinham uma ideia de universalismo, querendo que todo os seus súditos vivessem de acordo com suas normas, tendo uma certa liberdade em suas terras natais. Para conseguir isso, ele construiu estradas, o que influenciou diretamente na propagação dos conceitos do cristianismo.

b) Religiões de Mistério

    Por religiões de mistério, entende-se as religiões que tem um processo muito seletivo de conversão e iniciação para conhecer os mistérios do deus dessa religião. Uma religião que segue essas características é o Mitraísmo. É a religião do deus Mitra, que teria nascido de uma virgem, no dia vinte e cinco de dezembro, e teria sido morto e ressuscitado.

    Os discípulos do mitraísmo, para participarem da divindade de seu deus, comem um pedaço de seu corpo e bebem de seu sangue. O mitraísmo enquanto religião é anterior ao cristianismo. Grande parte dos soldados romanos eram adeptos do mitraísmo. Esse tipo de religião influenciou o cristianismo.

c) Filosofia Helênica (neo-Platonismo/Gnóstico)

    A filosofia grega influencia fortemente o cristianismo em seu início. Nós encontramos no evangelho de João a descrição de como era no principio: “λόγος” - Palavra. O termo “λόγος” não é um termo do cristianismo, não tendo sido criado por João. O termo foi absorvido da filosofia estoica. Para os estoicos, o “λόγος” é a razão universal da raça humana, é uma razão que está presente com os seres humanos, sendo a possibilidade da razão. Por conta disso, para os estoicos todo ser humano tem que ser respeitado, pois cada um deles possui uma fagulha do “λόγος” em si, sendo uma força impessoal que habita o ser humano. João em certo sentido cristianiza esta palavra. No evangelho de João o “λόγος” se encarna em uma pessoa que é jesus.

    Platão havia elaborado o conceito de dois mundos: o mundo das ideias e o mundo das sombra. Para Platão o corpo é a prisão da alma. Para que se alcance a ideia de mundo ideal, é preciso abandonar o corpo. O cristianismo tem hoje uma perspectiva dualista. Quando se trabalha a questão da evangelização, pensa-se somente na alma e não no todo.

    Dessa forma, os cristãos acabam fazendo escolhas inadequadas, quando preferem cuidar da alma em detrimento do cuidado com o corpo. Esta visão dualista não é uma visão cristã. O cristianismo propõe que não existe dualismo entre alma e corpo. Nessa perspectiva, dar pão a quem tem fome é o primeiro ato da espiritualidade.

    As necessidades das pessoas não são apenas necessidades espirituais e a salvação é integral para todo o ser humano. Se o dualismo for uma realidade no cristianismo, nada impede que o cristão tenha uma ética cristã que levante as mãos em adoração ao mesmo tempo que pague um salário mínimo aos funcionários, quando se poderia pagar mais. Uma liturgia vazia se faz acompanhada de uma manipulação, de uma dominação do oprimido, de uma injustiça praticada em nome de Deus, etc.

    A proposta do evangelho é vista quando encontramos Jesus fazendo o bem em toda parte que anda. Nesse sentido, a salvação que Jesus oferece é integral, onde contempla sim as demandas do espírito, mas atende as necessidades do cotidiano do ser humano.

d) Judeus-cristãos

    Os judeus-cristãos influenciaram no cristianismo nascente, especialmente pela produção do livro Didaqué dos Apóstolos, produção da igreja cristã do primeiro século. É uma descrição do que deve ser feito na igreja primitiva do primeiro século. O livro é importante e utilizado na igreja, sendo porém apenas um comentário do próprio evangelho. Nele encontramos orientações gerais sobre a vida nas comunidades cristãs.

2 - Tradições orais e tradições escritas: formação dos evangelhos

a) Características: inculturada, apologética, abertura ao futuro.

    Inculturação da fé: É a capacidade de dialogar com a cultura local. No momento da igreja primitiva, o evangelho era propagado como mensagem para um povo helênico. Se o receptor daquela época entende o que é “λόγος”, fica mais fácil comunicar uma verdade e re-significar um conceito da filosofia com uma lente cristã. Nesse sentido, o “λόγος” deixa de ser somente uma palavra para ser uma pessoa. É a palavra criadora de Deus que se torna uma pessoa.

    Literatura apologética: É um termo usada em uma passagem no novo testamento de modo que se vincule à esperança. Esta esperança é algo notório. Não é apologético como se entende hoje, que em nome do um discurso de fé elimina-se o outro discurso.

    Abertura ao futuro: A tradição cristã primitiva espera o futuro. Esperar nesse sentido tem a ideia de esperança e não de algo que seja temível. Para os cristãos primitivos, o dia do Juízo é um dia de esperança.

b) Retrospecto histórico:

    A proposta do ministério de Jesus não era fundar uma nova religião, mas reformar o judaísmo. É possível que a narrativa da fundação da igreja “sobre esta pedra edificarei minha igreja” seja uma construção posterior a Jesus.

    A proposta do evangelho de Jesus é uma proposta de igualdade, que começa no surgimento da igreja. Essa proposta é descrita nas narrativas do segundo testamento. Paulo descreve que em Cristo diferenças raciais, sociais e sexuais não existem, mostrando que a leitura do reino de Deus para a igreja é de igualdade. Há grupos já estruturados que pensam sobre as palavras de Jesus sob a sua própria realidade. Nesse sentido, a narrativa “tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei minha igreja” pode ser uma construção que justifique a ideia de que eles são comunidades e que é vontade de Jesus que eles sejam uma comunidade. Há uma discussão hoje sobre o que seriam palavras ditas por Jesus ou que palavras foram inseridas pelos discípulos sobre Jesus, inspiradas pelo Espírito Santo.

    A ideia de Reino de Deus começa a ser difundida pelas cartas de Paulo. A primeira carta de Paulo, e a primeira carta cristã – I Tessalonicenses – é escrita no ano 50 dC. O tema central desta carta é a volta de Cristo. Na comunidade cristã, há pessoas que tem parentes que morreram e estão desesperado. Para esses Paulo diz Não quero, porém, irmãos, que sejais ignorantes acerca dos que já dormem, para que não vos entristeçais, como os demais, que não têm esperança.” Há pessoas que acham que não precisam mais trabalhar, pois Jesus voltará logo. Sobre estes Paulo recomenda Porque, quando ainda estávamos convosco, vos mandamos isto, que, se alguém não quiser trabalhar, não coma também.” Há ainda outros que não possuem mais esperanças de que Cristo voltaria. A estes Paulo escreve “Porque vós mesmos sabeis muito bem que o dia do Senhor virá como o ladrão de noite” O retorno de Cristo é importante nos primeiros anos do cristianismo, pois seus seguidores lembram-se das palavras de Cristo quando dizia que Ele voltaria. O que Paulo escreve é feito sob a demanda das primeiras comunidades cristãs.

c) Formação dos evangelhos

    Os evangelhos são escritos pois há um grupo de cristãos que está padecendo uma grande crise, que era a destruição do templo e de Jerusalém. Diante dessa problemática, o evangelho de Marcos propõe que o caminho do discipulado é um caminho de sofrimento.

     Outra razão da escrita é porque as testemunhas de Jesus Cristo estão morrendo. Além disso, a volta de Jesus estava demorando. Nos primeiros momentos do cristianismo, não há necessidades de se escrever nada. Entre o ano 80 e 90 temos a escrita de dois evangelhos: Mateus e Lucas junto com Atos dos apóstolos, pois Lucas e Atos originalmente era uma obra só. Entre o ano 90 ao ano 95, temos a escrita do evangelho de João.

   Esses evangelhos reproduzem os problemas sociais dessas épocas. No evangelho de Mateus, temos assinalado uma grave crise da relação entre Judeus, cristãos, judeus-cristãos, judeus-helenicos. Por conta disso encontramos várias referencias relacionadas a guarda do sábado. Esses relatos tipicamente judaicos, não são encontrados no evangelho de João, pois na época da escrita do evangelho de João essa crise já havia sido resolvidas e o cristianismo já havia se separado do judaísmo.

     Se fizermos uma comparação de cronologia, veremos que em Marcos, uma das últimas ações de Jesus é sua ida ao templo de Jerusalém para o purificar, sendo morto uma semana depois. Esse relato que em Marcos está no final do evangelho, no Evangelho de João está no capítulo dois. Isso demonstra claramente que já houve uma separação entre cristianismo e judaísmo. Cada escrito vai responder a uma situação histórica, social e cultura.

    Em apocalipse, percebemos que os exílios foram motivados pelo império romano, na pessoa do imperador Domiciano. O ultimo texto a ser escrito no novo testamento foi 2 Pedro, o que nos leva a entender que não foi Pedro quem o escreveu. Há um momento nesta carta em que se lê: “E tende por salvação a longanimidade de nosso Senhor; como também o nosso amado irmão Paulo vos escreveu, segundo a sabedoria que lhe foi dada; Falando disto, como em todas as suas epístolas, entre as quais há pontos difíceis de entender, que os indoutos e inconstantes torcem, e igualmente as outras Escrituras, para sua própria perdição.” 2 Pedro 3:15-16. Podemos perceber que o escritor coloca os escritos de Paulo no mesmo nível das Escrturas, logo, trata-se de um escrito bem tardio.